Não precisava de tanto, duas cintilações lhe bastariam, dois olhos, e eles lá estavam.
(A Caverna, de José Saramago)
Somos lançados para a exposição sem qualquer enquadramento prévio. No entanto, o seu título parece ser, desde logo, esclarecido pelas pinturas que se alinham no corredor que nos conduzirá ao espaço expositivo. Agrupadas sob o mesmo título — um gesto que traduz a compulsão da artista para pensar as suas obras em conjunto —, revelam-nos o seu próprio corpo nu. De um traço vigoroso, quase infantil e de execução rápida, emergem figuras de contornos esbatidos, presenças quase fantasmagóricas que nos devolvem o olhar e nos detêm à entrada da exposição.
O que nos olha? São os olhos da artista, cintilantes, redondos e horrorizados. Mas a exposição não se refere apenas aos corpos que sobre nós repousam o olhar. O que nos olha são também as preocupações políticas que embebem estas telas. Influenciada pelas reflexões feministas das décadas de 1970 e 1980, Miriam Cahn adotou, desde cedo, uma abordagem radical ao papel e às imagens associadas e impostas à mulher ao longo da história da arte. Neste contexto, destacam-se as suas pinturas de nus femininos: corpos dobrados, grotescos, flutuantes, com o rosto desfigurado ou coberto. Multiplicam-se as representações de corpos envelhecidos, mas também as imagens de amamentações e de partos — gráficas, sanguinárias e, sobretudo, ausentes da história da arte. Note-se, no entanto, que esta ausência não é casual. Foi após o Concílio de Trento, em meados do século XVI, que a Igreja passou a condenar a representação do corpo feminino em gestos de nutrição ou prazer, apagando da iconografia cristã a Madonna lactans, figura da Virgem que amamenta. O corpo feminino, simultaneamente sagrado e objeto de desejo, foi sendo progressivamente censurado, reprimido e disciplinado. É neste sentido que uma das imagens da exposição — um corpo coberto por um niqab, mas com os seios e a genitália expostos — se torna particularmente incisiva. Esta pintura é uma provocação deliberada que incita uma reflexão sobre as imposições que, de uma forma ou de outra, recaem sobre estes corpos. Afinal, sobre a mulher recai a obrigação de se cobrir com um véu — mas também, e paradoxalmente, a de o retirar se assim for determinado. O corpo da mulher é regulado por um duplo comando: ocultar-se ou exibir-se, sempre em função do olhar do outro.
Estes corpos de Miriam Cahn colocam em evidência um prazer voyeurístico que implica, quase sempre, um objeto erótico submetido à contemplação curiosa do outro. Segundo Visual Pleasure and Narrative Cinema (1975), de Laura Mulvey — autora que estudou a influência da sociedade patriarcal na construção dos modelos de produção do cinema clássico de Hollywood —, a mulher surge frequentemente como um objeto passivo a ser olhado. É o homem, portador da visão, o elemento ativo que projeta as suas fantasias sobre a representação da figura feminina. Mas esta tipologia de olhar não poderá ser indiscriminadamente aplicada à generalidade das situações sociais. Em O que nos olha, a mulher não se oferece como objeto de contemplação erótica. Pelo contrário, as figuras femininas nas telas de Miriam Cahn recusam os estereótipos da beleza projetados para satisfazer o prazer masculino e subvertem a estrutura assimétrica do olhar. Subjacente a estas obras está um reconhecimento da mulher como elemento ativo do olhar — uma posição que recupera, por exemplo, a discussão em torno da obra In the Loge (1878), de Mary Cassatt, onde uma mulher, sentada no balcão de um teatro, observa o que está diante de si através de um par de binóculos sem, no entanto, devolver o olhar a quem a observa. E se, por um lado, esta perspetiva poderá ser excessivamente binária, impele reconhecer que esta surge à luz das reflexões feministas da época, enquadrada numa experiência pessoal e política situada. Em último caso, este jogo de olhares não diz apenas respeito à tipologia do olhar numa sociedade patriarcal, mas traduz também uma inversão da lógica do espectador no espaço expositivo — perturbado pelos rostos horrorizados que o fixam e destituído da passividade que lhe foi atribuída a priori.
Ao longo da exposição, são vários os núcleos que se debruçam sobre o desequilíbrio da distribuição de poder e sobre a violência, quer a uma escala individual, quer a uma escala coletiva. Logo no início, encontramos uma série de aguarelas que representam cogumelos atómicos, funcionando como uma espécie de manifesto anti-nuclear. A delicada paleta de cores e a transparência das aguarelas contrastam com a brutalidade da temática representada - e é precisamente desse confronto que emerge a sua potência simbólica. Mais adiante, numa outra sala da exposição, deparamo-nos com um conjunto de pinturas a óleo e desenhos de pequena e grande escala que reúnem imagens de aviões de guerra, helicópteros utilizados durante o conflito do Vietname, tanques, explosões, mas também o gesto de esmurrar, de violar, de pisar - no fundo, todos os objetos e ações que poderão ser compreendidos como máquinas de matar. Estes elementos reúnem-se em constelações concebidas pela própria artista no espaço expositivo, revelando uma continuidade entre a sua obra e o processo de montagem, assumido aqui como uma extensão da prática artística.
A questão da violência à escala coletiva ressurge nos seus trabalhos sobre o ataque do Hamas, apresentados na secção WEINENMÜSSEN, e na sala UNDASTELLAR, onde o foco recai sobre as migrações, os afogamentos no Mediterrâneo e os recentes massacres na Ucrânia. Nascida numa família judaica, a artista parte das suas experiências traumáticas, o que poderá contribuir para uma perspetiva, por vezes, unilateral e plana dos fenómenos geopolíticos. Ainda assim, essa abordagem não compromete a força nem a pertinência das suas representações, que situam a prática artística no centro do comentário crítico sobre a contemporaneidade. A este propósito, atentamos algumas pinturas onde vemos corpos arrastados, amarrados, que flutuam (ou se afogam) sobre um fundo azul — uma referência direta à crise dos refugiados. As obras, de estética inacabada e gestual, com tons vibrantes e um lirismo que se opõe uma vez mais à brutalidade do conteúdo, lembram a obra Les Noyés (1938), de Maria Helena Vieira da Silva, que - embora utilize uma paleta de cores mais sombria - nos remete também para esse limbo entre o abandono à morte iminente e a luta pela sobrevivência.
Ainda nesta sala, vemos Fuck Abstraction!, concebida após a circulação de algumas imagens do massacre de Bucha (Ucrânia) e dos relatos de violações perpetradas por soldados russos. A atrocidade é pouco detalhada, mas ainda assim evidente. O corpo do violador — musculado, implacável e sem rosto — surge sobre uma figura de menor dimensão, um homem ajoelhado e com as mãos atadas. Exposta anteriormente no Palais de Tokyo, esta obra foi alvo de uma série de interpretações que a identificavam como representação de abuso infantil e exigiam a sua remoção. Por essa razão, a sua apresentação nesta exposição veio acompanhada por um esclarecimento: os corpos não se referem a crianças, mas a figuras enfraquecidas perante uma força brutal. A assimetria no tamanho é, na verdade, uma representação da desigual distribuição de poder — uma provocação que nos confronta com este crime subnotificado e historicamente silenciado.
Estas obras figurativas contrastam com os trabalhos mais recentes da artista, que os apresenta como o cerne da exposição. Disposto ao longo de um corredor de teto baixo, que liga duas das grandes salas, encontramos um conjunto de pinturas com inscrições em alemão. E se há pouco referimos Fuck Abstraction!, que opta pela figuração para representar o horror — inclusive num período em que todos os seus pares optaram por uma linguagem mais abstrata —, nesta última fase do trabalho a artista parece contrariar o seu percurso, recusando a representação da figura humana. Tratar-se-á de uma recusa do deleite estético? Faço das palavras de Carolina Novo, em “Sleep well, beast”, as minhas. Talvez esta recusa seja o resultado de termos aprendido, enquanto sociedade, que há coisas que não devem ser vistas — pelo menos não repetidamente — e que as representações mediadas da violência e do sofrimento humano se tornaram numa das maiores armadilhas já inventadas. Mas esta recusa vem já tarde demais. Estamos mergulhados num abismo, e as imagens — esses olhos que nos fixam — parecem queimados na nossa retina. Há nelas uma fadiga acumulada, como se a própria possibilidade de olhar tivesse sido corroída pela repetição do horror. Estas últimas obras, quase murmuradas nas margens do espaço expositivo, não procuram representar, mas antes insinuar a ausência, o esvaziamento. Já não há nada a acrescentar. São as palavras que nos olham, depois da imagem. A exposição pode ser visitada no MAAT até dia 27 de outubro.