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Apertura Madrid 2025
DATA
29 Set 2025
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AUTOR
Maria Inês Mendes
A UMBIGO viajou até Madrid a convite da Apertura Madrid.
10.09.25
9:30. Coisa rara, esta, a de chegar ao Terminal do Aeroporto a tempo de me sentar para beber um café. Tinha ainda uma hora e meia até que embarcasse para Madrid, onde visitaria a Apertura Madrid 2025, um evento que, durante quatro dias, reúne inúmeras galerias da cidade num conjunto de inaugurações simultâneas. Há que começar a escrever. Nestas ocasiões, é bom que o processo de escrita se precipite sobre o acontecimento. Se, por um lado, um certo distanciamento pode trazer alguma clarividência, a escrita quer-se também tão imponderada e sincera quanto possível.
Detenho-me sobre uma conversa que tem surgido frequentemente, a dos não-lugares: as estações de comboio, os quartos de hotel, os parques de estacionamento e as fachadas que escondem terrenos baldios nos grandes centros urbanos. Serão os aeroportos não-lugares? Desta vez, cheguei ao aeroporto a tempo ainda de perceber que há quem os habite. E que os espaços habitados jamais poderão ser não-lugares. Entre os corredores inóspitos e as salas de embarque encandeadas por uma luz branca hostil, vejo aqueles que se despedem, ora hesitantes, ora sem olhar para trás. Aqueles que ficam - aliviados ou expectantes de um indício de que os que partem poderão talvez regressar. Vejo os corpos que chegam e os corpos que os recebem. Os corpos de braços abertos que recebem os corpos recém-chegados. E as placas, com os nomes que os identificam entre a multidão. Os abraços e os corpos ainda adormecidos depois de uma noite dormida no aeroporto. As formas inusitadas que os corpos encontram de ocupar os espaços que não os querem receber. São os atrasos nos voos de ligação e a juventude imprudente, que teima entregar-se ao agora sob pena de uma noite de sono mal dormida. E vejo, sobretudo, que este não é um lugar de passagem porque há quem por aqui fique: os que viajam com regularidade, os imigrantes esbarrados na fronteira pela complexidade dos processos burocráticos, e aqueles que, por uma ou outra razão - não me cabe enunciar -, aqui vão construindo memórias. Então, a questão não é mais se os aeroportos são não-lugares, mas o que fazer com os lugares para onde nos levam. Fiquemo-nos por aqui.
O voo para Madrid foi curto. Como sempre, mais curto do que a duração anunciada. Cheguei ao Hotel, de onde partiria, pouco tempo depois, com um grupo de jornalistas para a inauguração da Apertura Madrid nos jardins do Museu Lázaro Galdiano. Interrompido por um aguaceiro inesperado, o discurso de abertura foi também ele breve, mas suficiente para esclarecer a intenção desta 15ª edição. São mais de 55 galerias, integradas na Associação das Galerias de Arte Moderna e Contemporânea de Madrid, reunidas num evento que pretende não apenas inaugurar a nova temporada de exposições, mas também destacar a relevância das galerias no ecossistema cultural de Madrid e transformar a cidade numa capital da criação artística contemporânea. Já no interior do museu, dialogando com a arquitetura da antiga casa de um colecionador privado, visitámos, por sorte e simpatia de quem nos recebeu, uma exposição que só seria inaugurada no dia seguinte: Estado Fotográfico, da fotógrafa chilena Julia Toro. Entre a talha dourada e os magníficos frescos que pontuam os tetos, as suas fotografias a preto e branco irrompem como um murmúrio, ocupando as salas desta casa-museu com fragmentos que evocam o doméstico, a vida no bairro, a sexualidade e a intimidade. São imagens que não competem com a monumentalidade do espaço, nem com as obras de Goya e de El Greco aqui expostas - impressionantes quer na sua qualidade, quer no seu estado de preservação -, mas que instauram um diálogo entre o contemporâneo e o clássico, entre o íntimo e o histórico. Talvez seja precisamente isto que permanece - a estranha familiaridade de encontrar nesta casa, opulenta e inabitável, algumas imagens que se referem a um quotidiano vivido noutra latitude, mas imediatamente reconhecível.
Seguimos para a Casa Encendida, onde decorria a inauguração da exposição Oro tejido con paja, de Elena Mendizabel e Joan Rom, duas figuras relevantes nos seus respetivos contextos artísticos, o País Basco e a Catalunha. Resultado de um convite da Fundação a alguns artistas que, devido à sua data de nascimento anterior a 1965, não puderam candidatar-se ao concurso Generaciones, destinado a artistas com menos de 35 anos, a exposição reúne alguns dos seus trabalhos mais recentes. Se Elena Mendizabal recupera uma estética industrial, com um conjunto de vigas de aço envolvidas numa cera colorida e disforme, Joan Rom expõe um conjunto de peças que investigam precisamente os efeitos nocivos dessa industrialização. O corpo de trabalho aqui apresentado deriva de uma observação próxima do território de Mont-roig del Camp, onde o artista recolhe alguns materiais posteriormente submetidos a um exercício de ressignificação formal. Destaca-se a instalação Erm, composta por pequenos ramos delicadamente alterados para que as suas extremidades se tornassem pontiagudas. Disposta sobre o chão, a peça remete-nos para um arame farpado que impede a transgressão, lembrando que a presença humana nem sempre é bem-vinda. E Crostra (2023), um tumor de enxofre incrustado num pilar da galeria; um crustáceo que encontra no espaço arquitetónico um lugar de proteção.
Ainda na Casa Encendida, conhecemos o projeto Los Rótulos de Paco Graco, de Mercedes Moral, Guillermo Borreguero, Jacobo Cayetano, Alberto Nanclares e Zuloark, que, desde fevereiro de 2017, começaram a recolher os sinais luminosos de alguns dos estabelecimentos emblemáticos da cidade que têm fechado as suas portas. Ao longo de 8 anos de trabalho, são mais de 300 os rótulos recolhidos, muitos dos quais reunidos neste átrio interior. Lemos o nome de alguns espaços que ainda assombram o imaginário coletivo: a icónica discoteca Fantastico, a Cafeteria Fátima e a frutaria Hermanos Gomez. Vemos uma espécie de cidade fantasma, uma coleção dos não-lugares de Madrid. As paredes espelham tanto o património gráfico da cidade, como suas transformações, marcadas pela pressão da especulação imobiliária e pela crescente uniformização da malha urbana. E se a questão já não é saber o que fazer com os não-lugares, talvez importe, novamente, perguntar: o que fazer com os lugares? O projeto lança algumas pistas - antes de mais, é preciso aprender a cuidar.
O dia terminou com uma noite quente de fim de verão, numa praça rodeada de pequenas tabernas espanholas, onde os madrilenos se reúnem depois de um dia de trabalho, conversam alto como só os povos do Sul o sabem e tropeçam nos excessos de uma metrópole que não dorme. Trocam-se dois ou três dedos de conversa sobre as exposições visitadas e as primeiras impressões da cidade. Quatro ou cinco sobre as razões que até aqui nos trouxeram. Somos seis à mesa. Juntam-se as patatas bravas, o jamón e os bocadillos de calamares. Cerveja para todos os que não são intolerantes ao glúten e um copo de vinho para mim.

11.09.25
Amanheceu cedo. Tomei o pequeno almoço e saí antes que o calor tórrido se fizesse sentir. Dei uma volta ao quarteirão do Hotel, situado em Cuatro Caminos. É um bairro sobretudo administrativo, onde a azáfama se instala cedo em torno dos grandes escritórios. Na rua, vejo quase só homens engravatados, que caminham a passos largos, com as costuras do fato a ameaçar ceder a cada movimento. Não há muito que visitar por aqui, mas tenho esta convicção de que para conhecer uma cidade é preciso percorrê-la com o corpo, sentir os quilómetros acumulados nas pernas ao fim do dia. Depois, seguimos para Lavapiés, um antigo arrabalde da cidade medieval, onde se concentravam as populações judias e árabes. Agora, um bairro multicultural, marcado pela presença de intelectuais, artistas, imigrantes, e também por um forte ativismo político.
Eram muitas as galerias que havíamos planeado visitar. Começámos pela Galería Hilario Galguera que, à data em que escrevo, acolhe a exposição My Butter is Better, do artista e designer austríaco Stefan Sagmeister. A exposição reúne uma seleção de 20 pinturas às quais foram sobrepostos diagramas estatísticos, visualmente vibrantes e acessíveis ao espectador não especializado. Servindo-se de dados extraídos de bases de dados globais e nacionais, o artista apresenta um contraponto entre as imagens históricas, a narrativa fatalista do presente e as evidências empíricas de um qualquer avanço. Este inesperado gesto de sobreposição propõe um olhar esperançoso, que – como o título de uma das peças expostas sugere – nos diz: Everything is going to be OK.
A poucos minutos, ainda no distrito de Lavapiés, passámos pela Galeria Juan Silió, onde visitámos a exposição Fuerza Matriz, de Juan López. Interessado na transposição do papel para a escultura, o artista parte da paisagem urbana, que é força motriz para a criação artística, apropriando-se dos seus signos, formas, texturas e padrões. O interesse reside na apropriação destes elementos gráficos, posteriormente repetidos e invertidos, para criar uma linguagem com capacidade de redefinir radicalmente o espaço. Visitámos ainda a Mira Madrid, que acolhia a exposição coletiva In an Infinite Ocean of Numbers, Sink or Swim in Logic, de Esther Ferrer, Tom Johnson e de Isoldoro Valcárcel Media. Lembro as paredes da galeria, inteiramente preenchidas por centenas de desenhos sobre papel, rigorosamente emoldurados e pendurados em grelha: interpretações visuais dos números, das formas geométricas e dos sistemas matemáticos que regulam a ordem do cosmos; construções visuais que aliam o rigor científico e as interpretações que lhes são já paralelas.
Fizemos uma pausa para almoçar. À mesa, reuniam-se dois portugueses, um espanhol, um italiano, um francês e um britânico. A conversa decorria em portunhol, itanhol, francespanhol, numa mescla confusa e improvável de diferentes línguas. E se o constrangimento me toma por vezes ao tentar falar uma língua que não domino, desta vez conversava sem pudor. Tinha lido recentemente um poema de Douglas Diegues, autor que vive na fronteira entre o Brasil e o Paraguai, e o projeto Portuñhol, uma língua del futuro?, da revista Latin Loves, ecoava ainda em mim. Parecia-me esta a forma mais correta de comunicar. E os restantes faziam precisamente o mesmo. As normas da linguagem e as regras gramaticais perdiam a sua relevância em detrimento de um desejo de escuta do próximo. Partilhávamos uma refeição, um apreço cultural pelo tempo passado à mesa, mas também a capacidade de nos compreendermos neste espaço interlinguístico e transfronteiriço.
Depois do almoço, continuámos a visita às galerias que integravam a Apertura Madrid, desta vez no bairro de Salamanca. Entre as várias galerias visitadas, destaco a Albarrán Bourdais, onde fomos recebidos pela artista Cristina Lucas, que inaugurava a exposição individual e-conmotion. Recuerdos colectivos y futuros conscientes. No primeiro piso da galeria, sobre uma estrutura metálica que dialoga com a estética industrial do espaço encontramos dois painéis da sua série Composiciones. As peças, que resultam de um processo de assemblage intuitivo, incorporam materiais que remetem para as diferentes fases da história industrial, desde carvão, ferro, vidro, resina, microchips e placas silício. Estes fragmentos dialogam entre si, num movimento que parece escapar ao controle da artista e, simultaneamente, revelar que as revoluções tecnológicas - e os discursos que as sustentam - não são eventos históricos isolados, mas processos contínuos com consequências ecológicas, sociais e políticas irreversíveis.
As folhas de sala acumulavam-se na mala e as inúmeras exposições começaram a formar uma mancha turva na memória. Demos o dia por encerrado. Jantei ovos rotos num pequeno restaurante perto do hotel e deitei-me cedo. O programa de imprensa tinha terminado e o dia seguinte prometia ser um pouco mais livre.

12.09.25
Guardei o último dia da viagem para visitar, ao meu passo, alguns dos lugares que ainda me faltavam. Repeti o percurso do dia anterior: uma primeira volta pelo quarteirão do hotel e depois segui a pé pelas ruas já familiares. Ainda durante a manhã, visitei a exposição do C.A.D.A (Colectivo Acciones de Arte) e de Lotty Rosenfeld no Mira Archiv, um laboratório dedicado à conservação, digitalização e classificação de arquivos. A exposição, que reunia documentos, fotografias e registos de algumas das principais ações do coletivo chileno - ativo durante a ditadura de Pinochet - parecia condensar muitas das temáticas que atravessaram a minha estadia em Madrid.
Criado por artistas, escritores e intelectuais - entre eles Lotty Rosenfeld, Diamela Eltit, Raúl Zurita, Juan Castillo e Fernando Balcells -, o C.A.D.A. compreendia a arte como uma ferramenta de resistência e intervenção política, deslocando-a para fora dos espaços institucionais e inserindo-a no espaço público. Entre os trabalhos apresentados, destacava-se Una milla de cruces sobre el pavimento, uma ação individual de Lotty Rosenfeld que viria a tornar-se um dos gestos mais emblemáticos da arte latino-americana do século XX. Com fita adesiva branca, Rosenfeld modificava os traços contínuos das ruas, transformando-os em cruzes. Este gesto simples, repetido em diferentes geografias, do Chile à Alemanha, do deserto do Atacama ao Parlamento britânico, procurava questionar as fronteiras do poder, da circulação e da obediência. As obras falavam-nos sobre limites - físicos, políticos e geográficos -, mas também sobre a possibilidade de os desestabilizar. Sobre lugares e sobre a forma como a desobediência pode ser, em última instância, uma forma de os habitar.
Faltavam ainda algumas horas para o meu voo de regresso a Lisboa. Fui para o Parque de El Retiro, junto ao Palácio de Cristal. Deitei-me na relva. Queria escrever, ou pelo menos encontrar um fio condutor para tudo o que tinha visitado. É sempre este o grande desafio das viagens, em que as coisas se encadeiam mais rápido do que a escrita poderá alguma vez acompanhar.
O que fica, então? Ficam as fronteiras - nem sempre visíveis - que atravessaram estes dias: entre linguagens, entre o espaço público e as galerias, que tantas vezes se abrem à cidade e às suas preocupações. Ficam os lugares que habitamos como ponto de partida para a prática artística, e a prática como uma forma de interferência nesses mesmos lugares. Ficam as fronteiras que se diluem, que trazem até Espanha tantos artistas latino-americanos. E fica, sobretudo, a impressão de que estas questões - o legado colonial, a crise ecológica e especulação sobre o cosmos e os futuros possíveis - ressoam em Madrid com a mesma urgência com que atravessam fronteiras no mundo da arte contemporânea. Fica tudo isto e, sobretudo, uma vontade de regressar.
BIOGRAFIA
Maria Inês Mendes frequenta o mestrado em Crítica e Curadoria de Arte na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Em 2024, concluiu a licenciatura em Ciências da Comunicação na Universidade NOVA de Lisboa. Escreve sobre cinema no CINEblog, uma página promovida pelo Instituto de Filosofia da NOVA. Realizou um estágio profissional na Umbigo Magazine e, desde então, tem vindo a publicar regularmente. Colabora também com o BEAST - International Film Festival.
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