Primeira declaração de interesses: tenho uma paixão irrazoável (são-no todas, creio) por calendários e outros artefactos de medição do tempo lunar. Segunda declaração de interesses: qualquer exposição com objetos que me pedem para ser manuseados fica-me no coração. Assim sendo, Lunário Perpétuo agradou-me desde que entrei na galeria. O espaço da Alfaia transformou-se, uma vez mais, para acolher um conjunto feliz de peças visuais e uma instalação sonora. Começo por me referir a esta, pois o Stimmung da exposição impõe-se veiculada através de ruídos captados no Barlavento e no Sotavento algarvios e transmitidos, em inesperada harmonia, por duas colunas de som numa galeria no centro do Algarve – Loulé, precisamente, não pertence nem a uma nem a outra parte da região. Trata-se da obra Barlavento/Sotavento, de Inês Mendes Leal (1997), subtil atualização do trabalho que a artista desenvolveu na 2ª edição do Curso de Artes Visuais da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento em Loulé no final de 2023. Frente a frente ao fundo da galeria, imediatamente visíveis a quem entra, os dois altifalantes são como duas pessoas que se enfrentam, cada uma a pronunciar a voz que lhe ditam as entranhas (estão, aliás, sagazmente colocados à altura da cabeça de um adulto): duas pessoas que se transformam num som; que são só vento, que são apenas a terra que aquela sonoridade funda.
Da mesma artista, acrescentou-se, nesta exposição coletiva sob a curadoria de João Francisco Reis, a peça que mais diretamente incorpora o seu tema-título: um “Lunário” de madeira, construído por cinco partes que representam qualquer das fases da lua. É neste objeto que o visitante pode tocar, fazendo girar cada círculo lunar dentro da respetiva moldura e desenhando os diferentes rostos do nosso mais próximo satélite natural. Os ciclos lunares dominam-nos, mas a arte permite a ilusão de subverter essa relação de domínio, de fazer como se determinássemos nós o ritmo do seu movimento. O curador pergunta-se, na folha de apresentação: “o prognóstico de um lunário” não será idêntico à adivinhação (ou, digo eu, à prestidigitação) implícita na criação artística?
Ao contrário dos lunários integrados nos almanaques1 (os mais antigos datam da arte rupestre, são quase tão velhos como a Humanidade), que fixavam as previsões meteorológicas e de outros eventos naturais, como as mudanças da lua, este Lunário Perpétuo nada fixa: vem antes desestabilizar fixidezes e constitui um desafio a refletir “sobre as forças naturais, os ciclos cósmicos e os enigmas que desde sempre fascinam a humanidade” (texto do curador, citado acima). As sete belíssimas imagens a tinta-da-China, de Maria Capelo (1970, Prémio FLAD de Desenho 2022), são exemplo dessa instabilidade. Emolduradas e distribuídas pela galeria, surgem inscritas na superfície do papel como se fossem gravuras que ilustram páginas de lunários de séculos idos: estas peças são todas de 2024-2025 e parecem mimetizar velhas gravuras orientais, quando simultaneamente se propõem como contraparte visual de deslocações do ar (no que, aliás, compõem um diálogo com os sons emitidos pelos altifalantes de Inês Mendes Leal).
Pode dizer-se que a proposta da exposição Lunário Perpétuo assenta sobre princípios opostos, que ela se gera na convivência do irreconciliável (até nisso Barlavento/Sotavento dá o mote: arte originada na especificidade de um território local, ao diluir as diferenças desse território na indistinção ou na incaracterística transmissão do som do vento, transforma-se em arte universal). Funda-se igualmente num entendimento da arte enquanto lugar de jogo, ou logro: pense-se nas fotografias de João Mariano (1969), que conhece a fundo e há décadas fixa fotograficamente a paisagem em torno de Aljezur (zona barlaventina). Em Lunário Perpétuo, elas são imagens abstratas, mais do que sinais que identifiquem os locais que registam. Apesar de o trabalho deste fotógrafo ser eminentemente documental, aqui essa função está arredada e é substituída por uma abordagem criativa, estética e não só replicante. Duas das fotografias, estrategicamente colocadas a “abraçar” a instalação sonora, confundem-se com recortes na parede da galeria, quase convidando quem visita a passar para um outro lado daquele espaço e a visitar uma dimensão oculta. A fotografia da entrada, por sua vez, situada de frente para o “Lunário” de madeira, mesmo sem propor a abstração, revela uma forma (de pedra?, de madeira?, animal?) e é em tudo contrária à geometria lunar que enfrenta.
Robustez e leveza, dois traços aparentemente incompatíveis, desprendem-se em igual medida das esculturas de Maria Trabulo (1989, finalista do Prémio Novos Artistas Fundação EDP em 2022). A densidade de Pedestal IV pode contrastar com os contornos arejados de uma grade (Window Grid), mas todas as peças partilham na sua matéria a areia oriunda da Síria – de que a artista forneceu alguma quantidade para reposição. João Francisco Reis selecionou cinco amostras da coleção Fragile Stones, que a artista criou para o Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia de Lisboa em 2022, para comporem uma afirmação ao mesmo tempo estética e ética, de materiais primários (argila, ferro e areia) e estruturas com base em comunicação digital.2
Reunidas sob o desígnio de João Francisco Reis, as obras dos quatro artistas apresentadas em Lunário Perpétuo resultam numa ideia de tempo dominado e temporalidade libertada, de invocação do passado para a indagação do modo presente de existência. Os tempos e os lugares que começam por ser únicos, insubstituíveis (o som registado naquele ponto do Barlavento, a rocha fotografada que se localiza num ponto específico do sul de Portugal, a areia síria), passam, através de um “diálogo entre ciência, intuição e imaginação” – termos do curador (e, por outras palavras, através da arte) –, a ser transversal e universalmente humanos.
A exposição está patente na Alfaia, em Loulé, até dia 30 de agosto.
1 Publicações sobre as quais se debruçou, por exemplo, um algarvio estudioso da literatura popular, Manuel Viegas Guerreiro, juntamente com João David Pinto Correia, em “Almanaques ou a Sabedoria e as Tarefas do Tempo”, artigo publicado no volume 6 da Revista do ICALP (agosto/dezembro de 1986).
2 Estes trabalhos resultaram de dinâmicas de preservação e memória de artefactos arqueológicos que faziam parte do Museu de Raqqa e do Arquivo do Património Sírio, quase totalmente destruído com a invasão pelo Estado Islâmico, e cujas formas um conjunto de arqueólogos e historiadores sírios exilados na Alemanha têm vindo a recompor.