O museu foi imaginado por Paulo Teixeira Pinto quando, há mais de oito anos, o empresário e jurista fixou residência na região e conheceu o imponente edifício da Cooperativa Agrícola de Santa Catarina da Fonte do Bispo. Exemplo da arquitetura modernista de Manuel Gomes da Costa, foi edificado no final dos anos 1950 para servir de armazém e área de transformação de produtos regionais e nele se manteve essa atividade cerca de três décadas. Desde os anos 90 que os silos estavam desativados: a dimensão da construção deixa entrever a dificuldade em manter o edifício. A bondade da iniciativa de Teixeira Pinto está, desde logo, em ser garante da manutenção e da valorização de um relevante elemento do património industrial. Valorizá-lo enquanto lugar dinâmico, atribuindo-lhe a função de sede de um Centro de Arte Digital, acrescenta-lhe pensamento e gesto.
Para albergar o Museu Zer0, o edifício foi sujeito a uma cuidada intervenção, que se prolongou durante cerca de oito anos. O Museu, felizmente, não se resignou a esperar pela conclusão do projeto do ateliê Pedra Silva Arquitetos: assumiu a especificidade dos seus artefactos e foi-se construindo enquanto modo criativo, fazendo-se ponto de uma rede que alargava e tecia entre artistas, curadores e outras estruturas – locais, regionais, nacionais e internacionais –, enfim, enquanto marca de materialidade dispersa, mas cada vez mais reconhecível. Em 2019, as parcerias firmadas com a Universidade do Algarve e a AMAL-Associação de Municípios do Algarve, o Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia e a Fundação Calouste Gulbekian, em Lisboa, e o Centro de Artes “Ars Electronica”, de Linz, na Áustria, davam conta da ambição dos seus promotores.
De 2018 para cá, a aguardar a recuperação e adaptação do edifício, o Museu Zer0 funcionou sem sede fixa, estimulando a criação, a investigação e o debate em torno da arte digital. Um dos estimulantes exemplos das atividades anteriores à abertura da sua sede física foi Espaço/Programa, com curadoria de Miguel Carvalhais e Luís Pinto Nunes, apresentada em 2022 no convento de Santo António, em Loulé, em coprodução com a Fundação Bienal de Cerveira. Além da mostra propriamente dita, de peças e instalações de seis artistas portugueses (João Martinho Moura, Mariana Vilanova, Ana Carvalho, André Sier, Pedro Tudela e o próprio Miguel Carvalhais), a iniciativa resultou na publicação homónima, em que se sintetiza o fundamental do pensamento atual acerca da arte computacional, da media-arte e dos papéis que desempenham criadores, promotores e recetores destas formas artísticas. As exposições dinamizadas pelo Museu Zer0 no seu período pré-sede foram sendo organizadas em espaços privados e públicos – realizaram-se, por exemplo, mostras em galerias, debates com criadores e investigadores, e ações de mediação cultural e de formação de professores em escolas da região. A extensa e intensa atividade do museu denunciava, acima de tudo, a preocupação de criar e formar público, sensibilizando para a expressão artística digital mais atual. De caminho, persistia em dar a conhecer o lugar de Santa Catarina onde se preparava para residir: ainda nesse ano de 2022, Mapa Zero, uma instalação de vídeo criada por Nuno Lacerda, ocupou as paredes da Ermida de São Roque, no centro de Tavira, com imagens do artista a percorrer os antigos silos, numa muito bem conseguida combinação audiovisual de divulgação, jogo lúdico e exploração das potencialidades das formas digitais. Concluídas que estão as obras nos antigos silos de Santa Catarina, mais de quatro milhões de euros depois (financiados em 80% por fundos europeus, Programa Operacional CRESCAlgarve2020), o Museu Zer0 abriu finalmente as portas em setembro último. Esta abertura ao público tem decorrido em vários momentos, programados por Fátima Marques Pereira, que apresentou o museu como oficina renascentista. A ideia por detrás do conceito, segundo a curadora, recupera um contexto em que as obras de arte são concebidas na relação direta com o espaço (do edifício e da região) e com a vivência criativa que ali se proporciona, em “espaços vivos de saberes cruzados, onde a prática [é] também investigação”. As residências artísticas materializam o “modelo de produção contínua e colaborativa” em que Marques Pereira sintetizou a prática artística que ali se pretende continuar a dinamizar (o apoio da Fundação MEO às residências faz parte do investimento que promete assegurar aos artistas e curadores as condições criativas ideais e cruzar proficuamente “arte digital e impacto social”, nas palavras de Carolina Pita Negrão, da MEO, por ocasião da assinatura do protocolo entre as duas entidades, no passado dia 26 de setembro).
Para Fátima Marques Pereira, o facto de o museu não possuir “um acervo tradicional” permite que se estruture como uma “oficina viva” que privilegia a experimentação em ambientes digitais, relacionando-os sempre com o local onde materialmente são gerados. O “FabLab”, a sala imersiva ou o estúdio de som do agora aberto Museu Zer0 constituem zonas de trabalho na busca da plenitude com que Paulo Teixeira Pinto descreveu o “zer0” que deu nome a este centro de arte digital – mais do que anular existências, diz, o zero convida a imaginar “0 t0d0”.
Para as atividades inaugurais, além de ações de mediação cultural e de intervenções junto de escolas e IPSS do concelho de Tavira, Marques Pereira convocou um conjunto de criadores que exploram linguagens e expressões variadas para criar arte digital: Luís Fernandes dialoga com uma antiga máquina industrial; outras instalações e performances resultarão das produções de Sonoscopia + Os Resistentes, da associação ZABRA, de Maotik + Mina Mohseni, ou de Francisca Rocha Gonçalves com Christian Dimpker, e ainda das participações de Francisco Pedro Oliveira, Inês Mendes Leal ou Mariana Vilanova – alguns deles artistas que já colaboraram na fase, por assim dizer, imaterial do museu.
Quem visitar os antigos silos de Santa Catarina poderá ainda conhecer em pormenor a obra do arquiteto Manuel Gomes da Costa, homenageado na sala imersiva através de projeções 3D, ou ver, no dispositivo tecnológico da empresa byAR, como era o local quando os silos estavam em pleno funcionamento: a contemporaneidade e a história dos antigos armazéns ligam-se nesta nova encarnação do espaço.
João Correia Vargues preside, desde o início, à Direção do Museu Zer0; juntamente com a sua equipa, mantém o empenho de enraizar no território a criação de uma arte que se pode expandir por todo o universo. Merece que se continue a refletir sobre o que é a arte digital – e, agora, que se lhes visite as musas, na casa delas.