Neste sentido, a exposição de Elvira Leite promove um encontro que, ultrapassando exclusivamente a disposição de trabalhos, se desenvolve de acordo com a prática e a importância da artista em questão. Assim, a exposição desdobra-se num trabalho em que o espaço se aproxima do seu atelier, conjugando a apresentação de trabalhos, maioritariamente pinturas, com um arquivo de cartas, fotografias e registos que documentam e apresentam uma contextualização da vida e da prática de Elvira Leite de uma forma que ultrapassa unicamente a sua produção artística. Deste modo, ancorando o seu trabalho no ensino e na pedagogia, a exposição desenvolve-se de modo que a sua configuração, entre 16 de dezembro e 16 de janeiro, liberte espaço para a ativação das oficinas ‘O Espaço Entre’, com Cristina Camargo e equipas de mediação BOA Arts, PING!/GMP e Bibliotecas Municipais do Porto. O desenvolvimento deste espaço articula desta forma a própria abordagem da artista, inserindo a sua atividade e as suas preocupações com a relação entre a prática artística e o ensino no próprio desenho expositivo.
Já no piso 1, a exposição centra-se no diálogo entre o trabalho de Kiluanji Kia Henda e os trabalhos de três artistas. Partindo da noção de recursividade, esta aponta para a produção sempre auxiliada por um passado que a constrói. Este mecanismo torna-se evidente tanto na articulação dos trabalhos artísticos, no sentido da conjugação de abordagens diferentes, como na própria forma de lidar com o território. Neste sentido, a recursão aqui desenvolvida remete para uma “repetição da diferença”, semelhante à de Deleuze em que “a diferença habita a repetição. Por um lado, como se fosse em comprimento, a diferença faz-nos passar de uma ordem para outra da repetição: da repetição instantânea, que se desfaz em si, à repetição, ativamente representada...”1. A exposição apresenta, assim, por via de uma multiplicidade de propostas – escultura, filmes, gravuras, arquitetura –, um projeto de construção que incorpora a derrota da modernidade como abertura a uma nova relação com o tempo e o passado. Contrastando com a modernidade tecnológica ocidental, as peças conjugam a cultura angolana dos artistas com a necessidade de representar a ruína, o instável e o desconhecido como cruciais para a construção de qualquer ideia de futuro.
Operando numa atitude igualmente desafiadora perante o imperialismo científico e tecnológico da sociedade capitalista e moderna, o piso 0 é ocupado por uma exposição retrospetiva da dupla de Mariana Caló e Francisco Queimadela. Reunindo uma seleção de obras mais e menos recentes, conjuga o trabalho dos artistas na variedade que o constitui, com uma grande presença do filme e do vídeo, mas também do desenho e da escultura. Através de diferentes técnicas, o seu trabalho insere-se continuamente numa relação próxima com a ancestralidade e o espaço natural, onde a produção material é sempre acompanhada de uma transparência e simplicidade de meios. Neste sentido, surgem, em diferentes momentos, referências a costumes e rituais que remetem para uma noção de comunidade, construída através de histórias e de fábulas que definem o diálogo entre natureza e cultura. Assim, peças como Adoração ao Sol e Quase Lua em Trânsito incorporam a criação de dispositivos e a transmutação da luz como métodos de invasão ritualística do próprio espaço expositivo, que se torna um ambiente dinamizador. Por outro lado, acompanhando estes momentos que incorporam a própria ação do ritual no espaço, tornam-se igualmente presentes momentos mais representativos nos vários filmes que ocupam a exposição. Trabalhos como Livro da Seda – Diabretes, Domesticar há Milénios, Águas e Espelhos e Subir e Sumir apresentam retratos íntimos de momentos em que o quotidiano se conjuga com o onírico e o sensível, numa proximidade com o espaço natural. Neste sentido, toda a exposição parece situar-se nesta invocação de um espaço, onde o fantasioso se mistura com o real, e a sensibilidade e a intimidade surgem do detalhe do quotidiano. Por entre a sombra que domina o espaço, encontramos recortes de momentos e de contatos que, como num sonho imersivo, devolvem uma relação entre o humano e a técnica - não despida da atenção ao detalhe sensível, mas apresentada em função de um delicado contacto com um estado de espírito.
1 Deleuze, G. (2000). Diferença e Repetição, p. 149-150