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Geofilia: Gørvell, Mariana Caló e Francisco Queimadela, na Brotéria
DATA
18 Ago 2025
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AUTOR
José Pardal Pina
A neoruralidade de Geofilia faz-se destes encantos, por vezes silenciosos, por vezes radicais. [...] É, simultaneamente, uma ode ao heraclitismo da vida e da Natureza, das matérias transformadas pelo ser humano e pela decomposição, que revelam o papel inspirador das técnicas milenares, do artifício da humanidade, sempre sequiosa por mais, mas aqui criticamente contida em gestos de profunda gratidão e simbiose.
“Earth history is written in the depths, […] ‘the exposed depths of our own existence’ can be read in the ‘cipher language’ of the subterranean realm. As Novalis remarked, geology is an inverted astrology, a divination.”
Maya B. Kronic, Cryptolithic Passions, 2021

No princípio, era o céu e a terra – uma coisa disforme, plástica, à espera do sopro divino.
A terra tornou-se matéria viva, palco para argumento, quadro para memória; ganhou corpo – montanhas e vales, florestas e desertos, mares e oceanos.
Das depressões se fizeram as rugas dos deuses; das águas, as lágrimas dos anjos e santos.
E do mistério do invisível, da perfeição do que jaz oculto, se cantou o espírito da razão e da imaginação, porque uma não vive sem a outra e ambas se mesclam na vida que as faz ser: eis o Verbo – o Verbo que pensa e é terra, que dá corpo e alma.
Uma cratera na terra tem mais tempo que o tempo da humanidade. Mas as suas carcaças – as carcaças da humanidade, os ossos – são do mesmo pó que foi soprado no princípio. De C1 a S5, de L5 para S1, vemos a evolução desse Tempo Profundo, de todos os traumas e cataclismos da Terra, quando a escoliose aperta, a lombalgia contrai, e a traumata moderna colide com a traumata cambriana – catastrofismo espinal. Então compreendemos que somos da mesma calcificação óssea com que Deus moldou as estruturas do infinito. A coluna vertebral é a osteopaisagem que sedimenta a evolução das espécies: primeiro enroladas sob si mesmas, no miasma da criação; depois hirtas, em direção ao Sol. É o ânus solar, primeiro ciclópico e reptiliano, depois cultivado e apolíneo.
A história da ciência não é menos espantosa que a história da mitopoética, e técnica é apenas outra palavra para designar magia.

Há algo de profundamente encantatório em Geofilia, um pedaço de terra resgatado do tempo em que os padres do Antigo Egito e os magos da renascença cantavam os versos de Asclépio. Do chão se faz pó, do pó se faz vida, da vida se fazem imagens. Vemo-lo no ambiente onírico de Gørvell, no vedor suspenso, a girar no ar, orientado pela esfera armilar de madeira e levitando sobre as pegadas gravadas na cal. São objetos que falam de outrora e de agora, de um tempo sincrético cujas forças irradiam desta constelação de coisas. É uma declaração de amor às movimentações telúricas do solo, ao arrastamento das placas tectónicas, à vertigem de uma paisagem pretérita; versos de amor e alegria a um deus que excita o cosmos, que fala por Moisés e Orfeu, Hermes e Platão. A criptologia que descodifica os papiros recuperados do esquecimento e as tábuas escondidas nas grutas é análoga às criptas subterrâneas da terra, que inundam o ideário popular e as visões místicas das lendas.
Os druidas da floresta deixam símbolos enigmáticos no chão. Seguimos-lhes o rastro através da oralidade dos antigos. O que for retirado à Natureza, mais tarde terá de ser devolvido. E para que continue a frutificar e a renascer, inverno após inverno, primavera após primavera, é preciso cuidá-la.
Tudo é pela abundância e fertilidade, nesta exposição – uma pequena teologia da Terra, que busca na experimentação radical um meio de ligação entre seres e para lá de qualquer hierarquia ou conceito correlacionista. Neste espaço, que é o espaço de uma visão vagamente cosmogónica, entramos num barco que navega entre as nuvens de poeira.
Pairando sobre linhas que parecem aludir à ritualidade celta, um vedor assinala a existência de água no subsolo. O que se julgava ser uma prática esquecida, por muitos rotulada de pseudociência, a técnica do vedor é, na verdade, usada recorrentemente por agricultores e empresas da agropecuária: cotovelos colados ao tronco, cada mão a segurar as extremidades bifurcantes de um ramo em Y, caminhando cuidadosamente com a outra extremidade do ramo apontada para frente… o vedor indica a existência de água quando aponta para o céu. Uma ereção vegetal denuncia a coordenada específica para cavar um buraco. Como? De que maneira? Podemos indagar sobre o que parece ser mais óbvio: a flexão do ramo e o relaxamento dos músculos conduzem naturalmente o ramo para esse movimento ascendente – essa parece ser a explicação lógica. Mas não há como prová-lo – pelo menos ali, diante da tão evidente magia, da surpresa e do espanto, que tolda a razão e o espírito moderno…
Na sala contígua, o ensaio-vídeo de Mariana Caló e Francisco Queimadela empresta voz a todo esse legado milenar que transitou entre impérios, culturas, continentes e religiões. O menir é testemunha silenciosa de outrora, quando os homens faziam amor com a terra e as mulheres se entregavam aos rituais dionisíacos; quando a magia era religião e os registos solenes e encantatórios eram trauteados em quadras ou tercetos. Dele se bebem as teorias paleolíticas ou neolíticas e dele emergem as energias da rede de monumentos espalhados pelo globo. O ritualismo é evidente, no vídeo: os vários estágios da terra – sólida, como a argila; líquida como a lama; evanescente, como a poeira. É impossível não se associar às artes ocultas da geomancia, da prática divinatória através da terra, do esoterismo sedutor que conspira sobre uma contranarrativa arqueológica e científica que emane das forças do solo, em que o paleoceno se sobrepõe ao ctholoceno, em que a insofismável ciência degenera na imaginação febril de um coletivo dissonante. O vídeo faz-se da terra que pulsa, e o menir pousa inamovível sobre a terra gretada, impassível, inquebrantável, à espera da próxima extinção, da próxima criação.
A neoruralidade de Geofilia faz-se destes encantos, por vezes silenciosos, por vezes radicais. A terra oferece uma plasticidade infinita, tão imensa e intensa quanto o amor e a redenção – de quem, depois de anos à deriva, descobre um lugar pleno de significado, que é terra e é mar, passado e futuro, comungando de uma sobriedade e frugalidade que tudo deve aos elementos ou a Deus. É, simultaneamente, uma ode ao heraclitismo da vida e da Natureza, das matérias transformadas pelo ser humano e pela decomposição, que revelam o papel inspirador das técnicas milenares, do artifício da humanidade, sempre sequiosa por mais, mas aqui criticamente contida em gestos de profunda gratidão e simbiose.
Geofilia está patente na Brotéria até 5 de setembro.
BIOGRAFIA
José Pardal Pina é editor adjunto da Umbigo desde 2018. Tem um Mestrado Integrado em Arquitetura pelo Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa, e uma Pós-graduação em Curadoria de Arte pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. Curador dos projetos Diálogos (2018-2024) e Paisagens (2025-) na Umbigo.
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