article
Flavia Regaldo: Sobre a proporção das formas
DATA
15 Dez 2025
PARTILHAR
AUTOR
João Pedro Soares
Talvez tudo se inicie numa montanha, no despertar da terra erguida em altos cumes, em ancestrais sedimentações de espanto e mistério. Por aí diante, na descida das escarpas ingremes, a vida acontece, alberga-se nas fendas, reproduz-se nas encostas, alimenta-se nas grutas. Talvez seja por isso, também, que quando uma montanha desaparece, uma parte de nós deixa de existir, e interrompe-se algo no diálogo multiespécies onde nos inserimos. O vazio acomete-se repentino numa paisagem onde, apesar dos esforços de novos mantos vegetais, fica sempre aquele espaço por preencher. Uma cicatriz.
O trabalho de gravura de Flavia Regaldo parte precisamente destes pressupostos, de um lugar de fala alicerçado no ecossistema de campo rupestre de Minas Gerais e dos incessantes processos extrativos nesse território: se em tempos distantes e coloniais se ocupava este lugar numa desenfreada extração de ouro e diamantes, agora perpetuam-se os mesmos gestos de violência ecológica, no que é atualmente a extração do minério de ferro. Montanhas desaparecem do dia para a noite.
Mediante este estado de coisas, Regaldo apresenta na galeria Coletivo Amarelo a exposição Sobre a proporção das formas, com curadoria de Giulia Lamoni e Margarida Brito Alves. Trata-se de um mergulho nas últimas investigações da artista, que, apesar do percurso multidisciplinar (contando com obras de arte visual, desenho e instalação), tem vindo a especializar-se em gravura. Deste movimento criativo resultam as séries Deslize e Morfológicas, ambas iniciadas em 2024, e que contemplam semelhantes preocupações face à relação humana com a matéria mineral, compondo a maior parte da exposição. Mas também duas instalações Oscilação (2025) e Íngreme (2025). A primeira é composta por serigrafia em tecido assente numa estrutura de ferro, e a segunda é formada por placas de cobre gravadas e suspensas numa armação metálica.
Por sua vez, a série Deslize ocupa-se com a questão do degelo glaciar e surge de uma residência em Espanha para pensar este fenómeno nos Pirenéus espanhóis, em particular, nos Picos Aneto e Maladeta. Num conjunto de seis gravuras em metal e água-tinta, em tons avermelhados de espantosa nitidez, observam-se os relevos acidentados destes cumes, e convoca-se uma procura por captar os movimentos da cordilheira, estabelecendo-se uma relação contemplativa com o tempo geológico, num jogo de escalas entre humanidade e mineralidade que incita a consciência acerca das diferentes – mas também coincidentes – formas de encarar o espaço e o tempo que habitamos em conjunto com as montanhas.
A série Morfológicas, por sua vez, compõe-se de uma série de dez gravuras – também elas em metal e água-tinta – e parte de um material mais amplo de Regaldo, na recolha de arquivos e mapas, para refletir acerca de questões que parecem incidir sobre aquilo que poderia ser uma “afetividade geológica”. Isto é, se numa primeira instância observamos um pendor cartográfico, uma observação aérea sobre o território, onde o uso de mapas geomorfológicos encaminha uma detalhada atenção aos contornos, desníveis e elevações, fazendo-nos perscrutar intimamente as formas e proporções montanhosas; num segundo momento Morfológicas começa a mergulhar no solo, num estonteante aterramento, onde a gravura se torna microscopia, onde o que antes parecia ser mapa, acaba por se tornar micro-organismo.
Surgem também palavras convocadas no que a artista assume enquanto escrita inconsciente: “Caminho por voltas, caminho por séculos, caminho por orlas, caminho…” onde se torna impossível não pensar na famosa asserção do conservacionista e filósofo ambiental Aldo Leopold: “Pensar como uma montanha.” E nisto, não só pensamos como ela, como também nos tornamos nela, naquilo que o depurado trabalho artístico e investigativo de Flavia Regaldo consegue, em suma, convocar: uma reflexão de proximidade sobre montanhas, tempo e afetos.
Patente na galeria Coletivo Amarelo, em Marvila, até 24 de janeiro de 2026, a exposição é uma oportunidade de conhecer um trabalho estimulante acerca das relações que estabelecemos com o mundo natural. A entrada é livre.

BIOGRAFIA
João Pedro Soares (Almada, 1995) é cineasta, investigador e escritor. Licenciado em Artes e Humanidades pela Universidade de Lisboa, fez mestrado em Argumento e Realização na ESTC. O seu trabalho abrange cinema, fotografia e escrita, com foco nas relações entre humano-natureza, ecologia, futuros regenerativos e na interseção entre arte e agricultura. É doutorando em Estudos Artísticos na NOVA FCSH, com investigação sobre ecologia no cinema documental português contemporâneo. Realizou as curtas-metragens premiadas “Retrato de um homem enquanto ilha” (Prémio Novos Talentos Fnac 2021) e “A Incessante Conquista da Escuridão”, ambas exibidas em grandes festivais. Publicou ensaios, contos e poesia.
PUBLICIDADE
Anterior
article
Luminosa Anestesia: Guilherme Parente na Fundação Carmona e Costa
15 Dez 2025
Luminosa Anestesia: Guilherme Parente na Fundação Carmona e Costa
Por Tomás Camillis