O trabalho de gravura de Flavia Regaldo parte precisamente destes pressupostos, de um lugar de fala alicerçado no ecossistema de campo rupestre de Minas Gerais e dos incessantes processos extrativos nesse território: se em tempos distantes e coloniais se ocupava este lugar numa desenfreada extração de ouro e diamantes, agora perpetuam-se os mesmos gestos de violência ecológica, no que é atualmente a extração do minério de ferro. Montanhas desaparecem do dia para a noite.
Mediante este estado de coisas, Regaldo apresenta na galeria Coletivo Amarelo a exposição Sobre a proporção das formas, com curadoria de Giulia Lamoni e Margarida Brito Alves. Trata-se de um mergulho nas últimas investigações da artista, que, apesar do percurso multidisciplinar (contando com obras de arte visual, desenho e instalação), tem vindo a especializar-se em gravura. Deste movimento criativo resultam as séries Deslize e Morfológicas, ambas iniciadas em 2024, e que contemplam semelhantes preocupações face à relação humana com a matéria mineral, compondo a maior parte da exposição. Mas também duas instalações Oscilação (2025) e Íngreme (2025). A primeira é composta por serigrafia em tecido assente numa estrutura de ferro, e a segunda é formada por placas de cobre gravadas e suspensas numa armação metálica.
Por sua vez, a série Deslize ocupa-se com a questão do degelo glaciar e surge de uma residência em Espanha para pensar este fenómeno nos Pirenéus espanhóis, em particular, nos Picos Aneto e Maladeta. Num conjunto de seis gravuras em metal e água-tinta, em tons avermelhados de espantosa nitidez, observam-se os relevos acidentados destes cumes, e convoca-se uma procura por captar os movimentos da cordilheira, estabelecendo-se uma relação contemplativa com o tempo geológico, num jogo de escalas entre humanidade e mineralidade que incita a consciência acerca das diferentes – mas também coincidentes – formas de encarar o espaço e o tempo que habitamos em conjunto com as montanhas.
A série Morfológicas, por sua vez, compõe-se de uma série de dez gravuras – também elas em metal e água-tinta – e parte de um material mais amplo de Regaldo, na recolha de arquivos e mapas, para refletir acerca de questões que parecem incidir sobre aquilo que poderia ser uma “afetividade geológica”. Isto é, se numa primeira instância observamos um pendor cartográfico, uma observação aérea sobre o território, onde o uso de mapas geomorfológicos encaminha uma detalhada atenção aos contornos, desníveis e elevações, fazendo-nos perscrutar intimamente as formas e proporções montanhosas; num segundo momento Morfológicas começa a mergulhar no solo, num estonteante aterramento, onde a gravura se torna microscopia, onde o que antes parecia ser mapa, acaba por se tornar micro-organismo.
Surgem também palavras convocadas no que a artista assume enquanto escrita inconsciente: “Caminho por voltas, caminho por séculos, caminho por orlas, caminho…” onde se torna impossível não pensar na famosa asserção do conservacionista e filósofo ambiental Aldo Leopold: “Pensar como uma montanha.” E nisto, não só pensamos como ela, como também nos tornamos nela, naquilo que o depurado trabalho artístico e investigativo de Flavia Regaldo consegue, em suma, convocar: uma reflexão de proximidade sobre montanhas, tempo e afetos.
Patente na galeria Coletivo Amarelo, em Marvila, até 24 de janeiro de 2026, a exposição é uma oportunidade de conhecer um trabalho estimulante acerca das relações que estabelecemos com o mundo natural. A entrada é livre.