No mesmo gesto dramatúrgico, a encenadora da Público Reservado, companhia fundada em 2013, monta uma atmosfera plástica de irrealidade, em que a vitalidade é vizinha da morte, e o sopro discursivo recorta a precisão de cada movimento do corpo – onde qualquer piedade está ausente. Tudo é signo de poder e subjugação. Este espetáculo, Troianas de Séneca, está impregnado do regime escrito, mantendo toda a sua inteireza textual. A dramaturgia, que também é uma escrita ou caligrafia, aproxima o exercício de encenação do exercício de leitura: porque a montagem quase deixa ver o ato de ler (lápis no ar antes de destacar um trecho, frases em que nos detemos para as rever mentalmente). As réplicas repetidas pelos intérpretes (como quem sublinha) funcionam como um trabalho atento de apreensão, tal como o leitor (e, por consequência, o espectador) que deixa a palavra na boca a habitar um novo espaço desconhecido.
Se a dureza e a beleza do texto, uma linguagem tudo menos contemporânea ou quotidiana, têm expressão na rigidez dos corpos, o despojamento do palco negro cria um instantâneo dilatado no tempo, em contramão com o “realismo televisivo” da velocidade atroz. O espectador não tem outro remédio senão parar, de olhos e ouvidos abertos.
Com efeito, os exímios atores de Troianas (Bárbara Bruno, Diogo Tormenta, Mariana de São Pedro Lamego, Maurícia Barreira Neves, Tiago Sines; e o coro Anabela Sousa, João Coles, Renata Portas, Rodrigo Ferreira) recriam um modo de representação estilizado, codificado, denso, distinto quer da interpretação da vida da personagem, quer da apresentação típica das coordenadas aqui-e-agora da performance. É, portanto, uma linguagem desnaturalizada, simultaneamente luminosa e muralhada, e nesse sentido, um teatro duplicado, um Ur código, como diria Pasolini. A mise-en-scène do dizer (o vértice ímpar, além do contar e do mostrar) traduz uma forma porque as palavras são ditas, não pela primeira ou última vez, mas eternamente. É um enunciar teatral sublimado que vai contra a oralidade banal. A linguagem dita é lapidada a golpes certeiros na pedra: pedra enquanto bloco discursivo e enquanto carne do ator. Cada figura enunciativa passa à vivência, saindo do torpor objetual, no ato de dizer. Numa geometria enunciativa, cada personagem (Hécuba, Andrómaca, Astíanax, Pirro, Agamémnon Helena, Ulisses, etc.) faz-se dizer distribuída através de distintos atores, num regime polifónico que amplia as linhas temáticas de perda e dominação.
Como um tabuleiro de xadrez (as linhas demarcadas no chão, os movimentos fixos dos intérpretes), as cinco estátuas humanas, de inspiração helénica, são como esculpidas do mármore e moldadas num suspenso. Uma torção antes de tomar uma direção, um braço que sustenta uma veste, uma mão que empunha um punhal ou lança (a reter, o trabalho de movimento de Isabel Ariel e o desenho de luz de João Pecegueiro). Um enigma que, de oracular, passa a visual. Em registos claramente distintos, vêm-nos à memória imagens do corpo estático que se concretiza nas falas: Romeu e Julieta, de John Romão (2020, TNDMII), e Cinderela, de Lígia Soares (2018, SLTM).
A dimensão humana entre suprimida e hiperbólica (face impassível, o esgar, o grito) põe em cena a própria black box, mas também o white cube, dispositivos típicos de uma teatralidade e de uma visualidade. A caixa negra que aloja a ficção, e o cubo branco que exibe uma racionalidade. Este theatron ou pólis, lugar de ver e do exercício da política, cria um imago, talvez ortodoxo no uso da luz, talvez concretista devido à composição.
Subjacente a tudo há um clima funesto. Troianas relata, no original em verso latino, os destinos das mulheres de Tróia, após a guerra com os gregos. A cidade está destruída e as troianas são então tornadas escravas e atribuídas aos senhores gregos como parte de um lote de bens. Não obstante, é ainda exigido o sacrifício dos filhos destas mulheres, facto que se consumará.
Esta tragédia aborda o causar e a resistência do sofrimento, como resultado do sempre renovado desejo de poder que, inevitavelmente, habita e move os homens. A guerra será sempre o resultado e a interface desta sede de poder: tirar a vida para o homem se igualar a Deus.
Diz Pirro: “É permitido ao vencedor fazer o que desejar.” Responde Agamémnon: “Convém desejar o mínimo aquele a quem é permitido desejar muito.” Adiante dirá ainda: “Quanto maior for o teu poder, mais pacientemente deves suportar. É preciso saber-se, em primeiro lugar, o que é permitido ao vencedor fazer, e ao vencido sofrer. Ninguém mantém por muito tempo um poder violento, o poder moderado perdura; quanto mais alto a Fortuna eleva e exalta a força humana, tanto mais é preciso que o afortunado se humilde e estremeça com as mudanças incertas.” Com toda a lucidez, estes dois vencedores gregos argumentam quais as leis que devem governar os que dominam e os que sofrem, mostrando que um lado e outro podem oscilar. Séneca põe em cena o seu estoicismo: a carne trémula como pedra.
Assim, o ofício de distanciamento proposto pela desnaturalização da linguagem e pela encenação esquemática de Portas é um grito que se deve ao nosso entorpecimento contemporâneo e mediático. A guerra, o genocídio, a dizimação, a subjugação e humilhação – em curso a toda a hora, em várias tróias à nossa frente e que não vemos. É uma distância mandatória para falar da violência de hoje sem as palavras de hoje, considera a encenadora.
Tudo pode sempre ficar pior, apesar de quaisquer bons sentimentos que tenhamos perante o espetáculo do mundo. Os sacrificados são executados – na cena, caem os projetores de luz com um estrondo que nos faz estremecer. A tragédia cumpre-se sem travão.
Recentemente, Renata Portas apresentou também, em estreia nacional, Kung-Fu de Dieudonée Niangouna (2025, ESAP) e Adramelech de Valère Novarina (2022, Rua das Gaivotas 6). Fazem também parte do seu imaginário autores como Heiner Müller, Eurípides, Jean-Luc Lagarce, Pedro Eiras, Samuel Beckett, Peter Handke, de quem encenou peças.